quinta-feira, 17 de abril de 2008

O CHAMADO DO PASSAREDO

“Quero acordar com os passarinhos, cantar uma canção com o sabiá”
(MENINOS, de Juraildes da Luz, na voz de Xangai e Filhos)

Eram 4 horas da manhã. Fui despertada por uma cantoria de passarinhos que penetrava pela janela do meu quarto. Uma verdadeira conversa em alto e bom som na língua dos pios diversos, vinda de cantos remotos para dentro da minha cabeça sonolenta. Aquela algazarra, mesmo que eu não percebesse então, soava qualquer coisa de mágica, porque ela seria inimaginável dentro da cena que se descortinava pra fora da minha janela. O interior da quadra, que é o que se pode ver dali, é feito de cimento, tijolos, construções. A única vegetação que existe lá fora se resume aos vasos, à grama do playground e aos arbustos decorativos dos “quintais” (se é que se possa chamar assim os pedaços de jardins improvisados). Sem dúvida, um som que intrigava.

Em plena cidade grande, sem corredores arbóreos visíveis, que possibilitasse a migração e o deslocamento pela sobrevivência dessas aves, julguei que elas se comunicassem de dentro de suas gaiolas, das sacadas dos apartamentos que davam para o interior daquela quadra residencial. Um pensamento triste, mas eu não via qualquer chance de ser diferente disso. Era tudo muito estranho e em pouco mais de seis meses naquele endereço, essa madrugada era a primeira em que pude ouvir o som dos pássaros. Intrigava-me pensar que eles pudessem cantar tão alto de dentro de suas gaiolas. Também fiquei pensando sobre as pessoas que moram nesses grandes centros, as “catedrais” da arte da alvenaria, que se cercam de vasos e gaiolas numa tentativa desesperada de reter um pouco da vida que pássaros e plantas representam… do modo de vida rural, ambientalmente equilibrado, do qual toda a humanidade veio.

Despertada por esse canto, perdi o sono. No início, até me incomodei com essa algazarra de uma natureza sobrevivente naqueles prédios de concreto por ela fazer a minha segunda-feira começar mais cedo que o habitual. Refleti sobre aquilo, enquanto o grito forte da vida lá fora suplicava cada vez mais a minha atenção, atrapalhando uma leitura razoável dos próprios pensamentos. Liguei a TV num gesto instintivo de dar alguma finalidade àquela insônia… Objetivava me concentrar, então, no que pudesse ser “útil, prático, produtivo”, de acordo com os padrões vigentes da modernidade e da sociedade de consumo, pautada no lema do “time’s money”. Aliás, pelos conceitos de uma sociedade consumista de vidas humanas, lazer, sonhos, ócio e criação.

No entanto, as notícias da madrugada não me seduziram: violência urbana, guerras, problemas e mais problemas que, uma vez enxergados na tela, passavam a ser os de toda a civilização. E são mesmo! Seu, meu, de todo mundo. Tentei, então, os filmes: mais violência, mais guerras e amores fúteis ou intensos, que sequer de longe eram os meus. Feita essa constatação incômoda, abortei a operação de suposta produtividade adquirida pelo consumo das informações veiculadas na TV. Voltei ao escuro… Ao som estridente do passaredo urbano engaiolado. Larguei o controle-remoto ao lado da cama, onde ele se juntou à leitura inacabada, às fitas de vídeo, às embalagens de comida e bebida para compor um quadro de desassossego, que revelava um fim-de-semana deprimente e solitário… Isolado e absurdo. Toda aquela bagunça em volta refletia um estado de espírito assim: confuso e disperso.

O canto dos pássaros continuava lá fora a me chamar, alto e diverso. Tentei decifrar aquelas vozes e identificá-las. Minha atenção passeava alternadamente sobre cada som: o mais próximo, o mais distante, o mais grave, o conjunto melodioso… A alegria. Apesar do contato profissional diário com o modo de vida e as gentes do interior, não conseguia dar nome aos sons e associar a cada um deles as espécies de aves conhecidas. Lembrei do relógio de parede da casa de uma amiga, que a cada hora emitia o pio de uma espécie de pássaro da fauna brasileira, mas, ainda assim, não conseguia identificar os meus vizinhos engaiolados numa Torre de Babel. Esse conhecimento não era próprio de minha história; aquela vida rural não significava um acúmulo meu, mas apenas uma vontade latente de vivê-la. Afugentei de pronto esse pensamento de minha mente. Que mania essa de querer classificar, entender, de nominar para se apropriar das coisas?! É típica de uma cultura dominadora, na qual a insegurança conduz à necessidade de possuir e oprimir. Por que eu colocava tanta dificuldade no caminho e não podia simplesmente me deliciar com o canto contagioso daqueles passarinhos?


A natureza lá fora me convidava a dividir a atenção e a vida entre outros valores e outras percepções que não só aqueles contraditórios de um mundo de avanços tecnológicos e retardos sociais dessa humanidade paradoxal. Se quisesse obedecer ao chamado dessa vida, era preciso, pra começar, aprender a ouvir e sentir aqueles sons dos passarinhos. Mais nada! Foi o que finalmente me permiti fazer… Logo, amanheceu. E aquela segunda-feira antecipada estava só começando. Ela foi uma semente de uma proposta de transformação na vida dessa mulher.

(Texto da jornalista Thea Tavares)

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