domingo, 6 de abril de 2008

HERANÇA!

“Que palavra por palavra eis, aqui, uma pessoa se entregando”.

(Sangrando, de Gonzaguinha)

Seus amores cabem todos dentro de uma pasta.De uma velha pasta plástica escolar, daquelas que parecem feitas de canudinhos e que a menina se distraía em perfurar com caneta palavras e formas no seu tempo de escola. Aquela pasta verde de canudinhos guardava todos os seus amores.

Para um, ela fez um poema. Pra outro, plagiou o soneto da separação. Ao amigo, que sequer sabia do ardor reprimido, ela compôs uma música inteira e cifrada.

O “ficante” se contentou em ser um número de telefone rabiscado num guardanapo de papel borrado de cerveja. Já aquele que ela nem gosta de mencionar rendeu uma ação por perdas e danos, que levou os seus planos, seus pobres enganos, os seus 20 e poucos anos e deixou um coração picotado, aos pedaços, no chão. Virou papel amassado, foto rasgada e parte de um documento lavrado em cartório.

Do amor mais antigo, quando não se decidia entre amadurecer ou sorver mais daquele tempo de moleca, ela ainda conservava a folha seca da árvore do Passeio Público, a pétala de rosa, a semente de girassol e outros tantos símbolos de uma naturalidade que se foi há muito.

“São as lutas dessa nossa vida que eu estou cantando”(Idem) Até que um dia parou de escrever e de editar em resumidas e parcas linhas os batimentos do coração.E esse seu pequeno tesouro histórico virou acervo mofado dentro de um arquivo morto; empoeirado e esquecido nas prateleiras do escritório de seu apartamento…

De onde as lembranças encalacradas só saem para se submeter à tradicional faxina de ano-novo. Tempo suficiente para suscitar uma ponta de curiosidade, trazer de volta aromas, sensações e melodias do passado.Ela parou de escrever não porque não houvesse mais a necessidade de expressar sentimentos em palavras, mas porque percebera que os esboços anteriores não eram, agora, dignos de sua obra e da sinceridade madura com que se embrenhava nas entranhas misteriosas do amor.

Ela tinha diante de si o desafio de redigir algo mais elaborado e que exigisse a dedicação própria de um projeto grandioso, para o qual o tempo alternava-se entre ser parceiro e rival. Um camaleão que hora está da cor de quem ajuda e, logo em seguida, se veste com a tonalidade do adversário e fica disfarçadamente à espreita, numa defensiva e traiçoeira quietude.

Ela empreendeu escrever uma verdadeira enciclopédia, com seus conceitos, termos, significados e postulações e criou tantas palavras e neologismos que encheriam prateleiras e prateleiras de uma biblioteca robusta. Também encaixou ali receitas culinárias e manuais de sobrevivência.Passou a viver uma imensa coletânea dos diversos ramos do conhecimento e da formatação de idéias: psicologia, drama literário, sociologia, medicina (com ênfase no tratamento de traumas), história, muita filosofia, ciências exatas, comunicação, religiões, a leitura de periódicos e as reflexões de auto-ajuda. “Tudo o que você ouvir esteja certa que estarei vivendo”(Idem)

Parou de escrever porque não sabia mais como concluir aquela narrativa. Até que a certidão de casamento também foi morar — afinal, quem casa quer um canto — dentro da velha pasta verde de canudinhos de refrigerante, da qual não deverá sair tão cedo, a não ser que seja para se multiplicar em cópias autenticadas de um passado oficial.

Mas o que não cabe e nem nunca caberá dentro da pasta plástica é a certidão de nascimento que brotou dessa biografia intensa e que vem absorvendo 15 anos de elaborações profundas e de dedicação exclusiva. Já quase que se materializa sob a forma de título de eleitor, CPF, cartão de banco e declaração de imposto de renda.

Sem perder de vista a canção de ninar, as historinhas infantis e as poesias mais delicadas e redigidas com o rigor do cuidado e da proteção da mãe.O “full-time” do amor materno não cabe na pastinha dos relacionamentos efêmeros. Essa obra, de tão clássica, cala tudo o mais.

Claro que não se pode menosprezar o inusitado da vida humana, mas todas as demais publicações, com o passar dos anos, ganham o sentido de releituras. Por isso é que a última lembrança que ela armazenou dentro da pasta plástica verde feita de canudinhos foi justamente um envelope em que se podia ler em letras garrafais a palavra TESTAMENTO: “Para minha filha, deixo os registros de uma história de vida bem vivida. De posse desse legado e da análise dos erros e acertos aqui descritos, que ela trace um caminho único e próprio em direção à felicidade.

Revogam-se todas as disposições em contrário”!


“É apenas o meu jeito de viver o que é amar”(Idem)


(Texto da jornalista Thea Tavares, veiculado no Blog do Zé Beto, no Site Jornale, neste domingo, 06.04.2008)

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