... e a voz nos deixou, de repente, de cantar, de rir,
de falar aquelas coisas todas,
e a voz nos deixou de repente no meio do salão,
bailarinos indefesos,
sem ter o que fazer de nossos pares,
nossas mãos, nossos passos,
e daquelas paisagens inúteis
que agora nem braços tinham
para nos abraçar.
havia uma hora marcada no destino, riscada a preto e cicatriz,
revolta na solidão da noite e da manhã,
feito ferida e gangrena fatal,
como fatais são a meia-noite e o meio-dia.
havia uma hora marcada no destino, meu Deus,
essa hora havia,
e somente os deuses em suas alturas e sabedorias
sabiam da dor que nos atingiria, viventes um pouco da voz
que em breve iria nos deixar.
e que num dia comum – era uma terça-feira, pode isso? –
iria se calar para sempre, e para sempre se calou.
mas nós fantasiados com nossas cores infelizes
de supremas e frágeis alegrias,
dançávamos ao som do dia e do trabalho
naquele imenso salão de festas do mundo,
ali bailávamos, longe dos dramas, das marcas da vida,
dessa coisa comum e imperiosa chamada Destino.
dançávamos sedentos de sobrevivência
e nos preparávamos para o almoço
ou já tínhamos almoçado, não sei bem,
só sei que era hora do almoço
e tudo entalou de repente e faltou ar e faltou luz
e faltou verdade e também faltou mentira
para ser desmentida e nos consolar de um susto
bobo e cheio de terror.
faltou chão, meu Deus, faltaram forças,
faltaram sedes, faltaram sonos,
faltou tudo isso que por vezes vem florescer
nossos jardins castigados.
ah, que a voz silenciou sem uma última canção
(quem sabe tenha cantado de madrugada?
quem sabe tenha ninado os filhos?
quem sabe tenha entoado hino a um mundo adormecido?
quem sabe tenha cantado rezas como velhas escravas insones?)
era 19 de janeiro de 1982 e isso é difícil de esquecer
e isso nunca mais será esquecido...
a voz deixou de repente de cantar, de rir,
de falar aquelas coisas todas
e nos deixou abismados e mortos,
sem querer, mansamente até,
no meio do salão, da solidão,
enquanto a orquestra da Vida
tocava inutilmente,
sem alegria ou gosto, mas tocava,
como se fosse uma comunhão
para contrariar
a verdade bruta da ausência que se fez.
(Poema do jornalista Zeca Corrêa Leite, enviado pelo próprio autor, às vésperas de mais um 19 de janeiro sem Elís Regina)
sexta-feira, 18 de janeiro de 2008
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Um comentário:
Zeca, fantasticamente verdadeiro o sentimento que expressas neste poema!!! A noticia daquele dia, parecia nao ser verdade! A verdade... a overdose... a morte, parecia ser mentira!
Chorei junto a tantos milhoes naquele dia. E a amo como se aqui ainda estivesse!
Elis... sempre Elis: e ela disse "Eu sou uma estrela!"
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