quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

O EXÉRCITO DAS ORIANAS

Em foto de Daniel Castellano, a jornalista Terezinha Cardoso, em sua casa na Barreirinha, com o retrato ganho do cartunista Cláudio Seto


Elas enfrentaram a família,
a repressão e fizeram das masculinizadas redações
palcos para discutir
direitos humanos, saúde, cultura e meio ambiente


(Texto do jornalista JOSÉ CARLOS FERNANDES, veiculado no Jornal Gazeta do Povo nesta quinta-feira, 02.12.2010)


Em meados da década de 1940, uma adolescente italiana de 16 anos – Oriana Falacci – estreou no jornalismo, uma profissão em que as mulheres não eram só uma minoria. Não eram bem-vindas. A rotina das redações de jornal, por muito tempo, esteve associada à boemia e a um camaradismo que rivalizava com o Clube do Bolinha. Garotas poderiam não só desconcentrar os membros desses QGs como romper com as práticas de beberagem e tapinhas nas costas, nem sempre amigas da boa imprensa. Nada mais natural, na visão dos marmanjos, que elas se matriculassem na Escola de Educação para o Lar, na Rua Bento Viana, e procurassem atividades que lhes garantiriam voltar para casa mais cedo.

Não se sabe ao certo qual foi a recepção à esguia e aristocrática Oriana nos jornais por onde passou. O que se sabe é que nas duas décadas que se seguiram à sua estreia ela iria se tornar muito maior do que boa parte dos homens de terno, bigode e cigarros na mão com os quais dividiu a rotina de pautas e fechamentos. Formada no movimento clandestino “Justiça e Paz”, Oriana trouxe para a imprensa ganas pelos direitos humanos. Não ficou só na garganta. Cobriu, por exemplo, a Guerra do Vietnã, para citar um dos muitos territórios que desbravou, garantindo seu lugar nas páginas do capítulo mais estimulante do século 20 – a década de 1960.

No Brasil, a memória de Oriana, morta em 2006, parece descansar em paz. Salvo exceções. Os leitores da revista Realidade – que circulou entre 1966 e 1976 – não citam a publicação sem lembrar dos escritos acachapantes da italiana. Alguns, feito membros de uma ordem secreta, ainda guardam a edição de bolso da bela Carta a um menino que não chegou a nascer, lançado pela jornalista em 1975 e, com folga, o maior libelo antiaborto de que se tem notícia.



Na foto de Daniel Castellano, do Jornal Gazeta do Povo, a jornalista Vania Mara Welte: Prêmio Esso de Jornalismo, em 1996, pela série de reportagens do caso das “Bruxas de Guaratuba”

Em meados de novembro, meio que por acaso, um outro nicho de resistência aos “tempos de Oriana Fallaci” veio à tona, em Curitiba, por puro acaso. A dizer. Em uma única semana, alunos de Jornalismo de duas universidades locais – a PUCPR e UFPR – fizeram eventos em homenagem às primeiras repórteres paranaenses. A lista de convidadas é imperfeita, pois lhe falta jornalistas dos anos 50 e expoentes como Lúcia Ca¬¬margo, Marilu Silveira e Rosirene Gemael. Mas é um bom começo para recuperar a contribuição feminina à imprensa.

A galeria passa por Rosy de Sá Cardoso, que para escândalo começou a escrever em jornal nos idos de 1948 e foi a primeira a obter registro profissional; e por Mara Cornelsen, da geração 70, chamada pomposamente de musa do jornalismo policial, hoje convertido em jornalismo de segurança púbica. Entre uma e outra passa um rio – tem-se a presa política Teresa Urban, da estirpe dos jornalistas perseguidos pela ditadura; e Adélia Lopes, sem a qual não se conta nem a história da tevê nem a do jornalismo cultural impresso no estado.

Pois na UFPR, sentadas em semicírculo, diante de uma plateia de jovens que poderiam ser seus netos, cinco dessas muitas pioneiras se juntaram aos cultivadores de Oriana Fallaci e fizeram um tributo espontâneo à mulher que as inspirou, um dia, a escolher o jornalismo. Foi a melhor maneira de dizer que o sonho não acabou.

As declarações de amor a Oriana não são garantia “científica” de que a ativista tenha formado um discipulato no Brasil. Mas são um ótimo indicativo de que as primeiras mulheres que se achegaram das redações estavam atraídas pelo que há de mais nobre no jornalismo – a capacidade de abalar as estruturas sociais, como se dizia nas rodinhas ripongas ou nas guerrilheiras.

Por ironia, a contar pelo que foi dito aos estudantes, a maioria teve de começar a mudança pela cozinha de casa: informar que ia cursar Jornalismo equivalia a contar que tinha perdido a virgindade ou fumado maconha depois de uma matinê no Thalia. As reações eram as mais diversas, e divertem quem nasceu num tempo em que namorado pode não só dormir na casa da sua guria como tomar café da manhã com o “velho” dela.

Rosy – neta do coronel João Gualberto, herói da Guerra do Contestado – já tinha mandado às favas a etiqueta de mocinha da sociedade antes de integrar a equipe de O Dia, no final dos anos 1940: a redatora vinha de breve e luminosa carreira como cantora de rádio, tornando-se uma das estrelas da Guairacá. Tamanho topete, claro, fez com que sua avó materna a declarasse “vergonha da família”. O jornalista João Dedeus Freitas Neto, grande amigo, bem que ponderou. “Rosy, naquela época, pior do que cantora de rádio e jornalista, só mesmo prostituta...”

Os pais, sabe-se, seguiam uma espécie de cartilha do Bope. E muitos homens de imprensa faziam o impossível para que as redações não se tornassem uma sucursal do Colégio Sion. “Eu tive de começar a usar calça comprida. Saía com o fotógrafo para a reportagem e ele ficava me olhando estranho, com cara de quem queria...”, relembra a impagável veterana Terezinha Cardoso, 64 anos, registrada em O Estado do Paraná no dia 13 de dezembro de 1968, aquele do AI-5. Senta que lá vem história.

Perrengue semelhante passou Vânia Mara Welte. Quem a conhece sabe que o verbo correto é esse: ela “estreou” na redação de O Estado do Paraná em 1967 quando ainda era estudante de Jornalismo da Católica. Tinha todos os predicados para o posto: cursara escola normal, era moça de fino trato, lia Realidade e estava antenada tanto nas revoluções de costumes vindas de Paris quanto nas passeatas da Rua XV.

A extroversão, a inteligência viva, assim como os cabelos asa da graúna e as minissaias que fariam corar Mary Quant, fizeram com que Welte vivesse cercada de rapapés. A guria que até então alfabetizava soldados na Praça Oswaldo Cruz e chamava às falas fardados de alta patente, adorou o chamego. Tinha encontrado sua turma. Décadas depois, já casada, com filho e consagrada como uma das nossas Orianas, soube pelo jornalista Francisco Camargo, o Pancho, que aqueles homens tão gentis tinham feito uma aposta sobre quem a levaria para a cama primeiro. Ah, perdedores!

Essa conversa é uma delícia, mas não se resume a um café com bobagem. A chegada das mulheres às redações serve de munição para os estudiosos de gênero, interessados no impacto do feminino nos anais da imprensa. É o que confirmam os depoimentos. As primeiras deduções sobre o material reunido são adiantadas por elas mesmas – senhoras hoje entre 80 e poucos e 60 e não se fala mais nisso: ao tratar as pioneiras como bibelôs, ou como objeto de abate, os homens, talvez inconscientemente, tramavam aniquilar a influência daqueles Orianas. “De certa forma, continua assim”, pontua a outra Teresa, a Urban.

Não se sabe com segurança quantas mulheres passaram pelas redações paranaenses entre Rosy Cardoso e Mara Cornelsen, naquele que se pode chamar de “período de formação”. O que dá para afirmar é que nessa fase não lhes serviram o filé mignon da reportagem, como o jornalismo de economia e de política. As que chegaram antes ficaram encarceradas nos voiles e cetins do colunismo social de antanho. As que vieram atrás foram mandadas para a porta das delegacias, onde digeriram copos de cólera: os homens que cobriam policial não raro ficavam amigos de delegados, assumiam seu linguajar e recebiam informação privilegiada. Para elas, não teve refresco. Era um bom convite a desistir. Muitas devem tê-lo feito. Outras arrumaram as malas e desbravaram seu próprio Vietnã.

Em tempo: Rosy é uma das mais longevas do jornalismo de turismo do Brasil. Teresa Urban é das inauguradoras do jornalismo ambiental. Teresinha Cardoso tem no currículo a cobertura de casos feito o da morte de Leon Eliachar, em 1987, para O Globo, e uma longa folha corrida de serviços à economia. Vania Mara Welte é Prêmio Esso de Jornalismo por sua cobertura do caso conhecido como “Bruxas de Guaratuba” e é referência em Direitos Humanos. Mara enfrenta a violência, pois é preciso. Elas falam de Oriana Fallaci com intimidade: são amigas de longa data.



Para saber mais

Veja como encontrar mais informações sobre as desbravadoras do jornalismo:

Imprensa de batom

- Projeto de conclusão de curso de Jornalismo na PUCPR das estudantes Amanda Bahl, Marina Salmazo, Natasha Schaffer e Bárbara Albuquerque, com orientação da jornalista Suyanne Tolentino. http://www.imprensadebaton.blogspot.com/.


Pioneiras do jornalismo paranaense
- Alunos produziram debate com mulheres que chegaram às redações na década de 1960 e 1970 e produziram série de reportagens. Coordenação da estudante Fernanda Sartor. www.jornalcomunicacão.ufpr.br.




CARTA A UM MENINO QUE NÃO CHEGOU A NASCER

(Abaixo o texto da já falecida jornalista italiana Oriana Fallaci, na foto)


À noite soube que existias:
uma gota de vida que se escapou do nada.
Eu estava com os olhos abertos
de par em par na escuridão e, de repente,
nessa escuridão, acendeu-se um relâmpago de certeza:
sim, estavas aí. Existias



O texto é de Oriana Fallaci, a grande escritora nascida em Florença, Itália em 1932. Ela descreve nesta terna e aterradora carta a um menino que não chegou a nascer, escrita em 1978, essa sensação de amor e ao mesmo tempo de arrependimento que sentem algumas mulheres ao trazer à vida um ser a quem não podem assegurar a felicidade; um ser que talvez um dia nos repreenderá com amargura: Quem te pediu que me trouxesses ao mundo, porque me trouxeste, por quê?


"Uma gravidez difícil por ser, além de mãe solteira, uma mulher com êxito profissional cujos planos se fecham perante o anúncio imprevisto deste filho não planejado.

A minha amiga diz que estou louca em querer conservar-te. Ela, que está casada, abortou quatro vezes em três anos. Essa cruel alternativa é considerada também fugazmente por esta mulher inteligente.

Na escuridão que te envolve ignoras até que existes. Eu poderia desfazer-me de ti e tu nunca o saberias. Não terias a possibilidade de chegar à conclusão de que se eu te fiz mal ou te dei um prêmio. Todavia nada é pior que o nada, filho. O que é verdadeiramente mau é nunca existir.

E assim, o poderoso instinto materno triunfa sobre o raciocínio intelectual e lógico desta mulher excepcional. E, então, a mulher-mãe, procura proteger o seu filho, ainda que contra a sua própria vontade. Começa assim, ao longo da sua breve gravidez, um terno e aterrador monólogo com esse ser tão estranho e ao mesmo tempo tão seu, que tomou posse das suas entranhas.

Certamente, tu e eu formamos um estranho par, meu menino. Tudo em ti depende de mim, e tudo em mim depende de ti. Se adoeces, eu adoeço e se eu morro, tu morres. Mas, estranhamente, não posso comunicar-me contigo, nem tu comigo. Aí dentro, ignoras o que é a escravidão. Aqui fora, por outro lado, terás mil amos. E o primeiro amo serei eu, que, sem querer, talvez sem sequer me dar conta - te submeterei a imposições que são justas para mim, mas não para ti.

O teu encontro com o mundo será um pranto desesperado. Nos primeiros tempos só conseguirás chorar. Passarão semanas e mesmo meses até que da tu boca se abra um sorriso. Serás um homem ou uma mulher?

Quisera que fosses mulher. Ser mulher é fascinante, é um desafio que nunca chega a aborrecer. Terás que bater-te para demonstrar que dentro do teu corpo liso e arredondado há uma inteligência, pedindo com gritos que a escutem.

Cansar-te-ás de gritar. E, de vez em quando, quase sempre, perderás. Mas não deves desanimar. Bater-se por uma causa é muito mais reconfortante que vencer; viajar, muito mais divertido que chegar. Sim. Espero que sejas mulher; não faças caso se te chamo menino. Porém se nasceres varão, sentir-me-ei igualmente contente e talvez mais, porque te verás livre de muitas humilhações, de muitas servidões, de muitos abusos.

Naturalmente, te corresponderão outras escravidões, outras injustiças; nem mesmo para um homem é fácil a vida, sabes? E, todavia, ou precisamente por isso, ser homem constituirá uma aventura maravilhosa, um empreendimento que não te decepcionará jamais.

Comprei-te um berço. Depois de comprá-lo recordei-me que, segundo dizem alguns, possuir um berço, antes que nasça o menino, dá azar. Mas as superstições já não me afetam. E, todavia, algo sucede. A mãe deixa de sentir a presença do filho. Visita o médico e as suas palavras cordialmente indiferentes, fundem-na num pesadelo. Tem razão. Desde há pelo menos duas semanas, talvez três, já não cresce. Ânimo, não há mais remédio. Morreu?

Desde o fundo do seu coração parece-lhe escutar a voz do seu filho: por que tenho que existir mamãe? Qual é a finalidade? No meu universo, que tu chamas ovo, essa finalidade existe: nascer. Mas no teu mundo a finalidade é tão só morrer. A vida é uma condenação à morte. E eu não vejo porque tenho que sair do nada para regressar ao nada?.

Martelante e cruel, surge dolorosa a pergunta a que jamais poderei ter contestação. Terei sido eu, filho, quem te decepcionei da vida e te impulsionou para o suicídio?

Não obstante, a mãe compreende que a indescritível dor por esse filho que não nasceu, é apenas um fato isolado da voragem da reprodução humana.

Agora já não estás. Apenas há um frasco de álcool dentro do qual flutua algo que não quis converter-se em homem ou em mulher. Por que deveria fazê-lo? me perguntaste. Pois porque a vida existe, menino!

Mas em algum outro lugar nascem mil, cem mil meninos, e mães de futuros meninos. A vida realmente, não necessita nem de ti nem de mim. Tu estás morto e talvez morra eu também. Mas não importa, filho, porque a vida nunca morre."

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