São Longuinho bem que poderia iluminar
os que perderam a capacidade de pensar
e de ter bom senso no atendimento público em Curitiba
Uma noite dessas, por volta das 22 horas, a costureira Dona Luzia estava a caminho do ponto de ônibus do Hospital Nossa Senhora da Luz, que fica na esquina da continuação da Kennedy com a Mal. Floriano, a fim de tomar o biarticulado Cabral/Portão. Ela fora ajudar uma amiga a vencer o serviço para entregar uma grande encomenda no dia seguinte e por uma sucessão de infortúnios, só restou voltar para casa naquele horário, preocupada em chegar antes dos filhos saírem da escola e aliviada com o dinheirinho extra que entraria naquele mês.
Faltava vencer aproximadamente 50m para chegar à parada, quando o ônibus apareceu na esquina e ela fez todos os malabarismos para chamar a atenção do motorista, porque se perdesse aquela lotação, só dali a sabe-se lá mais quanto tempo naquele lugar ermo e escuro. Pensou que, por sorte, o sinal estava fechado na esquina da Rockfeller (pois acabara de atravessar a rua quando avermelhou) e era um motivo a mais para o motorista fazer a gentileza de parar a menos de 50m do ponto. Triste engano! Ele a viu, mas não parou...
Teve a desumanidade de deixar uma pessoa sozinha, uma mulher, ali, naquele adiantado da hora, num ponto escuro e isolado de uma Curitiba que há tempos não permite mais algum improviso desse tipo ou torna impraticável lidar com situação parecida. Uma Curitiba com toque de recolher imposto por bandidos e uma cidade em que a violência contra a mulher só aumenta.
Dona Luzia teve muito medo e não foi sem razão, porque minutos depois ela se viu abordada por um rapaz pedindo dinheiro, com a agressividade típica de quem não tinha nada a perder se lhe fizesse algum mal – mesmo que distante do que já vitimara o menino antes e o colocara em condições de reproduzir a violência. Só a explicação de que Deus existe é que pode contar como ela se livrou daquela situação.
No instante em que o rapaz intimidava a costureira na parada, passou outro ônibus, o Raquel Prado/PUC. Não tinha nada a ver com o seu trajeto, mas o condutor logo percebeu a situação e abriu a porta para a mulher aflita entrar. Ambos conversaram, ela lhe contou o que havia acontecido e ele ficou muito revoltado com a falta de sensibilidade demonstrada pelo colega que deixara Dona Luzia para trás.
Ela nem titubeou e pagou a passagem a mais. Por orientação dessa pessoa que sabe cumprir seu ofício, mas que também é, acima de tudo, um ser humano de bom senso, que pensa e que tem compaixão, ela desceu na PUC, onde havia mais iluminação, muitas pessoas transitando na saída da faculdade e tomou um ligeirinho para voltar ao seu trajeto original, rumo ao bairro do Cabral.
Luzia ficou pensando em quantas mulheres, quantas pessoas passariam por aquilo todos os dias, quantas funcionárias dos plantões da Santa Casa, serventes, que saem tarde do trabalho e enfrentam situações semelhantes? Ou mesmo quantas professoras e estagiários da clínica da PUC, que fica ali perto?
Esse sentimento de responsabilidade coletiva fez com que ela ligasse para o telefone 156 da prefeitura de Curitiba e resolvesse fazer uma reclamação. A moça que atendeu Dona Luzia perguntou: “ - você tem a identificação do motorista”? Ela disse que não, que não teve tempo de anotar placa ou número do ônibus, que só se preocupou em correr e fazer sinal para o veículo parar.
Muito menos saberia identificar a pessoa. “- Minha filha, era um biarticulado da linha Cabral/Portão, que passa no ponto do Hospital Nossa Senhora da Luz entre 22h05 e 22h10”. “ - Então, não podemos fazer nada . Não é possível abrir uma reclamação assim”, disse a mulher do outro lado da linha e que deve ter feito a mesma escola profissionalizante do motorista do Cabral/Portão.
Em vão, a costureira, religiosa como é e mãe de família, tentou explicar à atendente do 156 que o que a motivava ligar para a central da prefeitura era uma solicitação para que se transmitisse aos motoristas do transporte coletivo uma lição de cuidado em casos como o seu, ou mesmo no transporte de idosos, de mulheres que embarcam com crianças no colo e necessitam de um tempo a mais para se acomodarem ou ainda uma série de circunstâncias que exigem mais do motorista que saber dirigir e conhecer o percurso da linha.
Pediu que lhes explicassem que a falta de sensibilidade torna-os de certa forma responsáveis também pela desproteção das pessoas. Porque um gesto individual faria a diferença, como na iniciativa que teve o segundo motorista.
Enfim, tentou apelar para o bom senso e dizer que é preciso resgatar valores humanos, senso de coletividade, de amor ao próximo e de cuidado para com o outro nesse mundo em que valem mais que gentilezas e boa educação os lemas do “cada um por si”, “salve-se quem puder”, a lei do Gérson e por que não dizer o descompromisso do “foda-se”? Fique registrado que esse último jamais saiu da boca de Dona Luzia, ficou apenas guardado no fundo do pensamento da boa senhora. A indignação é que remete ao termo.
Para provar que não ligava a mínima pros argumentos da costureira ou sequer entendia o idioma em que ela se expressava, a atendente do 156 simplesmente respondeu: “- Não podemos generalizar”! Daí, quem não teve mais paciência para continuar a prosa foi Dona Luzia, pois aquele vocabulário repleto de negativas e imperativos de dificuldades exauria o restante das suas forças e descarregava as baterias da civilidade dessa mulher que nasceu e cresceu em outra Curitiba, em uma realidade diversa, sob uma convivência que não se pratica mais.
O retrato de uma sociedade, do convívio entre as pessoas e de uma gestão pública pode ser conferido em histórias simples como a de Dona Luzia. Eu leio os jornais, ouço o noticiário – seria melhor dizer obituário? - e me pergunto por que ficou tão difícil sair de casa à noite – ou mesmo de dia –, voltar com segurança, ir à igreja, comprar pão na padaria, remédio na farmácia, mandar os filhos para a escola? Ou simplesmente contar com um gesto de bondade de uma pessoa tão trabalhadora quanto a Dona Luzia?
Assim como o motorista e a atendente não se responsabilizaram com a vida e a opinião da costureira, o poder público também não está nem aí para os moradores da cidade. Transfere para cada um e só a responsabilidade com o cuidado e com a forma de proteção de que necessitam para sobreviver. Será pedir demais que se assuma a solidariedade como norma?
A cidade em volta de Dona Luzia mudou... Na essência e na aparência. Só o coraçãozinho dela é que parou no tempo e não percebeu os sintomas dessa transformação. Não até o instante em que se confrontou com a violência ali no seu nariz: na indiferença do primeiro motorista, na agressividade de um jovem pedindo dinheiro na rua, fruto dos males que o vitimaram a vida toda também, e no descaso da telefonista.
Diferente da noção da barbárie que tem a farmacêutica que toma anti-depressivos e possui o emocional totalmente despedaçado pelas sucessivas investidas à mão armada de outros tantos moleques a cada semana. O marido dela diz só ter uma certeza: “- Vai acontecer, a dúvida é quando e com quanta brutalidade”.
A cidade sorriso está à procura de seus dentes. Mas, nela, a humanidade ainda resiste na figura do outro motorista, o condutor do Raquel Prado/PUC. Na hora e lugar precisos, ao parar e abrir a porta do ônibus para Dona Luzia em gesto heróico, ele materializou uma autoridade que não existe no plano institucional e uma esperança que já se dava por perdida.
Faltava vencer aproximadamente 50m para chegar à parada, quando o ônibus apareceu na esquina e ela fez todos os malabarismos para chamar a atenção do motorista, porque se perdesse aquela lotação, só dali a sabe-se lá mais quanto tempo naquele lugar ermo e escuro. Pensou que, por sorte, o sinal estava fechado na esquina da Rockfeller (pois acabara de atravessar a rua quando avermelhou) e era um motivo a mais para o motorista fazer a gentileza de parar a menos de 50m do ponto. Triste engano! Ele a viu, mas não parou...
Teve a desumanidade de deixar uma pessoa sozinha, uma mulher, ali, naquele adiantado da hora, num ponto escuro e isolado de uma Curitiba que há tempos não permite mais algum improviso desse tipo ou torna impraticável lidar com situação parecida. Uma Curitiba com toque de recolher imposto por bandidos e uma cidade em que a violência contra a mulher só aumenta.
Dona Luzia teve muito medo e não foi sem razão, porque minutos depois ela se viu abordada por um rapaz pedindo dinheiro, com a agressividade típica de quem não tinha nada a perder se lhe fizesse algum mal – mesmo que distante do que já vitimara o menino antes e o colocara em condições de reproduzir a violência. Só a explicação de que Deus existe é que pode contar como ela se livrou daquela situação.
No instante em que o rapaz intimidava a costureira na parada, passou outro ônibus, o Raquel Prado/PUC. Não tinha nada a ver com o seu trajeto, mas o condutor logo percebeu a situação e abriu a porta para a mulher aflita entrar. Ambos conversaram, ela lhe contou o que havia acontecido e ele ficou muito revoltado com a falta de sensibilidade demonstrada pelo colega que deixara Dona Luzia para trás.
Ela nem titubeou e pagou a passagem a mais. Por orientação dessa pessoa que sabe cumprir seu ofício, mas que também é, acima de tudo, um ser humano de bom senso, que pensa e que tem compaixão, ela desceu na PUC, onde havia mais iluminação, muitas pessoas transitando na saída da faculdade e tomou um ligeirinho para voltar ao seu trajeto original, rumo ao bairro do Cabral.
Luzia ficou pensando em quantas mulheres, quantas pessoas passariam por aquilo todos os dias, quantas funcionárias dos plantões da Santa Casa, serventes, que saem tarde do trabalho e enfrentam situações semelhantes? Ou mesmo quantas professoras e estagiários da clínica da PUC, que fica ali perto?
Esse sentimento de responsabilidade coletiva fez com que ela ligasse para o telefone 156 da prefeitura de Curitiba e resolvesse fazer uma reclamação. A moça que atendeu Dona Luzia perguntou: “ - você tem a identificação do motorista”? Ela disse que não, que não teve tempo de anotar placa ou número do ônibus, que só se preocupou em correr e fazer sinal para o veículo parar.
Muito menos saberia identificar a pessoa. “- Minha filha, era um biarticulado da linha Cabral/Portão, que passa no ponto do Hospital Nossa Senhora da Luz entre 22h05 e 22h10”. “ - Então, não podemos fazer nada . Não é possível abrir uma reclamação assim”, disse a mulher do outro lado da linha e que deve ter feito a mesma escola profissionalizante do motorista do Cabral/Portão.
Em vão, a costureira, religiosa como é e mãe de família, tentou explicar à atendente do 156 que o que a motivava ligar para a central da prefeitura era uma solicitação para que se transmitisse aos motoristas do transporte coletivo uma lição de cuidado em casos como o seu, ou mesmo no transporte de idosos, de mulheres que embarcam com crianças no colo e necessitam de um tempo a mais para se acomodarem ou ainda uma série de circunstâncias que exigem mais do motorista que saber dirigir e conhecer o percurso da linha.
Pediu que lhes explicassem que a falta de sensibilidade torna-os de certa forma responsáveis também pela desproteção das pessoas. Porque um gesto individual faria a diferença, como na iniciativa que teve o segundo motorista.
Enfim, tentou apelar para o bom senso e dizer que é preciso resgatar valores humanos, senso de coletividade, de amor ao próximo e de cuidado para com o outro nesse mundo em que valem mais que gentilezas e boa educação os lemas do “cada um por si”, “salve-se quem puder”, a lei do Gérson e por que não dizer o descompromisso do “foda-se”? Fique registrado que esse último jamais saiu da boca de Dona Luzia, ficou apenas guardado no fundo do pensamento da boa senhora. A indignação é que remete ao termo.
Para provar que não ligava a mínima pros argumentos da costureira ou sequer entendia o idioma em que ela se expressava, a atendente do 156 simplesmente respondeu: “- Não podemos generalizar”! Daí, quem não teve mais paciência para continuar a prosa foi Dona Luzia, pois aquele vocabulário repleto de negativas e imperativos de dificuldades exauria o restante das suas forças e descarregava as baterias da civilidade dessa mulher que nasceu e cresceu em outra Curitiba, em uma realidade diversa, sob uma convivência que não se pratica mais.
O retrato de uma sociedade, do convívio entre as pessoas e de uma gestão pública pode ser conferido em histórias simples como a de Dona Luzia. Eu leio os jornais, ouço o noticiário – seria melhor dizer obituário? - e me pergunto por que ficou tão difícil sair de casa à noite – ou mesmo de dia –, voltar com segurança, ir à igreja, comprar pão na padaria, remédio na farmácia, mandar os filhos para a escola? Ou simplesmente contar com um gesto de bondade de uma pessoa tão trabalhadora quanto a Dona Luzia?
Assim como o motorista e a atendente não se responsabilizaram com a vida e a opinião da costureira, o poder público também não está nem aí para os moradores da cidade. Transfere para cada um e só a responsabilidade com o cuidado e com a forma de proteção de que necessitam para sobreviver. Será pedir demais que se assuma a solidariedade como norma?
A cidade em volta de Dona Luzia mudou... Na essência e na aparência. Só o coraçãozinho dela é que parou no tempo e não percebeu os sintomas dessa transformação. Não até o instante em que se confrontou com a violência ali no seu nariz: na indiferença do primeiro motorista, na agressividade de um jovem pedindo dinheiro na rua, fruto dos males que o vitimaram a vida toda também, e no descaso da telefonista.
Diferente da noção da barbárie que tem a farmacêutica que toma anti-depressivos e possui o emocional totalmente despedaçado pelas sucessivas investidas à mão armada de outros tantos moleques a cada semana. O marido dela diz só ter uma certeza: “- Vai acontecer, a dúvida é quando e com quanta brutalidade”.
A cidade sorriso está à procura de seus dentes. Mas, nela, a humanidade ainda resiste na figura do outro motorista, o condutor do Raquel Prado/PUC. Na hora e lugar precisos, ao parar e abrir a porta do ônibus para Dona Luzia em gesto heróico, ele materializou uma autoridade que não existe no plano institucional e uma esperança que já se dava por perdida.
(Texto da jornalista Thea Tavares)
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