Com fotos de Lineu Filho,
Eu conheço o Maguila, que agora está numa gaveta da geladeira do Instituto Médico Legal de Curitiba esperando uma identificação que, provavelmente, nunca virá. Ele será enterrado como indigente daqui a alguns dias, mas quantos Maguilas há pelos cantos obscuros desta cidade?
Este Maguila foi encontrado sob o viaduto colorido da Vila Capanema num dia de muito frio. Estava caído de bruços, cara pousada sobre o próprio vômito, vestido com três blusas, quatro calças e pés descalços. Havia dois buracos de balas no peito, um cachimbo de crack no bolso e uma tatuagem aracnídea na mão direita preta de sujeira.
Eu conheço o Maguila porque ele está aqui dentro, coabitando minha vida limpinha. E sei que este Maguila está aí, em você que está lendo e vendo estas imagens fortes. O Maguila pode aflorar a qualquer momento. Nunca sabemos. Comigo ele veio junto com o álcool, que bebia para curar uma dor que nasceu quando fui gerado. Ou antes, sabe-se lá. E um dia ele bateu à porta da minha cabeça e me convidou para abandonar tudo, porque nada tinha mais graça.
Para que a casinha bonitinha de madeira pintada de marrom e com janelas brancas no Jardim Social? Para que o casamento aparentemente tranqüilo cujo resultado eram os dois filhos saudáveis? Para que o emprego bem remunerado, os textos lidos no Brasil inteiro, se eu sofria para escrever uma letra, se penava em ter de ir conversar com os boleiros da vida?
O meu Maguila me arrastava para a rua, para o nada, para junto dos Maguilas destes outros desesperançados, abandonados, inchados, que esperam a morte encurtando o tempo em goles de qualquer coisa que tenha álcool, até o de perfumes, desodorantes e do combustível para carro. O meu Maguila, porém, não foi forte o suficiente, mas ficou aqui, cutucando, inventando nova fórmula de dopagem, em carreiras bem batidas do pó branco, depois em líquido na seringa para ir direto à corrente sanguínea, para, quem sabe, abreviar tudo numa overdose que não veio.
Este Maguila que está na gaveta do IML é da era do crack, este demônio que domina tudo na primeira baforada e vai ceifando vidas. Alguém falou que este homem,cuja face não conhecemos, era violento. Talvez daí o apelido do boxeador. Mas… era mesmo?
Tive vários amigos que se tornavam briguentos ao primeiro gole. Conheço muitos e muitos dependentes que, sem nada que interfira no sistema nervoso central, são anjos. Maguila se escondeu debaixo do viaduto - e quase ninguém sabia disso. Queria se proteger do mundo que ele nunca entendeu. Nós também não entendemos, mas procuramos disfarçar. Provavelmente ele tinha medo. E um gole, uma baforada no cachimbo, na lata de refri, o tornava valente para tirar o que era do outro, para conseguir o dinheiro suficiente de mais uma pedra.
Um dia encontraria alguém para acabar com sua fama de valente – e esse é um script conhecido. Se não fosse assim, seria de outra forma, porque ele, infelizmente, não teve como descobrir que é possível controlar esse bicho que há dentro da gente. Esse bicho descrente de tudo, raivoso, destruidor. Maguila não teve escolha.
Talvez, em algum momento, quando ajoelhou diante das imagens de Nossa Senhora Aparecida e Nossa Senhora de Fátima, colocadas no pequeno altar de seu esconderijo, talvez num breve momento essa possibilidade da escolha tenha lhe passado pela cabeça carregada de nuvens cinzas. A escolha entre aquilo que vivia e aquilo que um dia conheceu, porque ninguém nasce assim. Mas isso deve ter sido tão rápido…
E este Maguila também não pode receber a carga das palavras iluminadas da Bíblia. Uma só poderia mudar sua vida. Só por hoje mudou a minha e a de muita gente que também já esteve na rua, dominado. Está lá o corpo estendido no chão. É o de Maguila. Que conheço, pois está aqui dentro, sempre querendo sair.
o texto do jornalista Zé Beto é emocionante,
profundo e leva à reflexão
sobre o ser humano anônimo, sofrido e ignorado por todos.
O texto é forte e, ao mesmo tempo,
carregado de sensibilidade.
Zé Beto o publicou em seu Blog
e eu o trouxe para cá,
pela sua imensa importância humana
e coragem generosa
Eu conheço o Maguila, que agora está numa gaveta da geladeira do Instituto Médico Legal de Curitiba esperando uma identificação que, provavelmente, nunca virá. Ele será enterrado como indigente daqui a alguns dias, mas quantos Maguilas há pelos cantos obscuros desta cidade?
Este Maguila foi encontrado sob o viaduto colorido da Vila Capanema num dia de muito frio. Estava caído de bruços, cara pousada sobre o próprio vômito, vestido com três blusas, quatro calças e pés descalços. Havia dois buracos de balas no peito, um cachimbo de crack no bolso e uma tatuagem aracnídea na mão direita preta de sujeira.
Eu conheço o Maguila porque ele está aqui dentro, coabitando minha vida limpinha. E sei que este Maguila está aí, em você que está lendo e vendo estas imagens fortes. O Maguila pode aflorar a qualquer momento. Nunca sabemos. Comigo ele veio junto com o álcool, que bebia para curar uma dor que nasceu quando fui gerado. Ou antes, sabe-se lá. E um dia ele bateu à porta da minha cabeça e me convidou para abandonar tudo, porque nada tinha mais graça.
Para que a casinha bonitinha de madeira pintada de marrom e com janelas brancas no Jardim Social? Para que o casamento aparentemente tranqüilo cujo resultado eram os dois filhos saudáveis? Para que o emprego bem remunerado, os textos lidos no Brasil inteiro, se eu sofria para escrever uma letra, se penava em ter de ir conversar com os boleiros da vida?
O meu Maguila me arrastava para a rua, para o nada, para junto dos Maguilas destes outros desesperançados, abandonados, inchados, que esperam a morte encurtando o tempo em goles de qualquer coisa que tenha álcool, até o de perfumes, desodorantes e do combustível para carro. O meu Maguila, porém, não foi forte o suficiente, mas ficou aqui, cutucando, inventando nova fórmula de dopagem, em carreiras bem batidas do pó branco, depois em líquido na seringa para ir direto à corrente sanguínea, para, quem sabe, abreviar tudo numa overdose que não veio.
Este Maguila que está na gaveta do IML é da era do crack, este demônio que domina tudo na primeira baforada e vai ceifando vidas. Alguém falou que este homem,cuja face não conhecemos, era violento. Talvez daí o apelido do boxeador. Mas… era mesmo?
Tive vários amigos que se tornavam briguentos ao primeiro gole. Conheço muitos e muitos dependentes que, sem nada que interfira no sistema nervoso central, são anjos. Maguila se escondeu debaixo do viaduto - e quase ninguém sabia disso. Queria se proteger do mundo que ele nunca entendeu. Nós também não entendemos, mas procuramos disfarçar. Provavelmente ele tinha medo. E um gole, uma baforada no cachimbo, na lata de refri, o tornava valente para tirar o que era do outro, para conseguir o dinheiro suficiente de mais uma pedra.
Um dia encontraria alguém para acabar com sua fama de valente – e esse é um script conhecido. Se não fosse assim, seria de outra forma, porque ele, infelizmente, não teve como descobrir que é possível controlar esse bicho que há dentro da gente. Esse bicho descrente de tudo, raivoso, destruidor. Maguila não teve escolha.
Talvez, em algum momento, quando ajoelhou diante das imagens de Nossa Senhora Aparecida e Nossa Senhora de Fátima, colocadas no pequeno altar de seu esconderijo, talvez num breve momento essa possibilidade da escolha tenha lhe passado pela cabeça carregada de nuvens cinzas. A escolha entre aquilo que vivia e aquilo que um dia conheceu, porque ninguém nasce assim. Mas isso deve ter sido tão rápido…
E este Maguila também não pode receber a carga das palavras iluminadas da Bíblia. Uma só poderia mudar sua vida. Só por hoje mudou a minha e a de muita gente que também já esteve na rua, dominado. Está lá o corpo estendido no chão. É o de Maguila. Que conheço, pois está aqui dentro, sempre querendo sair.
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