Poty Lazzarotto me deu uma das últimas entrevistas, ou quem sabe a última. Não sei… Um outro amigo sabia disso e me pediu que fizesse um texto, no dia da morte do artista, para constar de um livro, baseado na tal última entrevista que eu havia feito com ele. Isso foi há mais de 10 anos. O texto é o que segue:
Napoleon Potyguara Lazzarotto, ou simplesmente Poty. Morreu o homem, mas permaneceu o mito de um artista universal, que se confunde com a própria cidade em que nasceu. Poty e Curitiba comemoravam aniversário no mesmo dia 29 de março há mais de meio século, desde 1924. Brincalhão, pregou uma peça à cidade: Ao morrer, no dia 8 de maio (de 1998), frustrou o brilho da festa do próximo ano. Poty jamais dizia a idade que tinha. Mas a indeterminação do tempo era um direito adquirido ao longo dos anos, pelo universo de suas obras espraiadas por toda Curitiba, identificando ambos no mesmo espaço e em um único abraço.
Poty e Curitiba são, hoje, “griffes” internacionais. O artista influenciou toda uma nova geração de profissionais: poetas, escritores, jornalistas, artistas, urbanistas e até arquitetos. Com Poty, formou-se um novo traço que identifica, une e transcende espaços e tempo. Criou-se uma nova cultura regional que ultrapassou fronteiras, imaginações e desafios. Mas, modesto e simples como os grandes gênios, Poty tentava explicar: “Em matéria de amigos, circunstâncias e fatos, sempre tive muita sorte. Nasci empelicado. Nada de extraordinário, todas as oportunidades apareceram no momento exato”.
Como se fosse comum uma criança ler aos quatro anos de idade, como ele o fez, na tentativa de saciar a própria curiosidade pelas estranhas e atraentes figuras dos livros, da história universal, que transbordavam uma banheira antiga que existia na casa de seus pais. “Essa banheira é a minha mais remota memória de infância”, dizia maroto. Uma imagem que ficou registrada em seus primeiros desenhos que reproduzem cenas históricas de assírios, egípcios e romanos. Cenas que nada tinham a ver com o bairro em que nasceu. “Nasci no suposto Cajuru, depois minha família se mudou para o suposto Capanema. O bairro continua no mesmo lugar. Mas hoje leva o pomposo nome de Jardim Botânico”, brincava.
Nada do bairro lembra o tempo em que os meninos, como Poty, levavam as vacas leiteiras para o campo dos Kemps. Poty se deixava levar pelas lembranças e sorria, deixando escapar o menino que ainda guardava em algum cantinho dele. E o menino se tornava real nas lembranças do artista. “Esse era um tempo bom e feliz”, testemunhava. Era um tempo em que a zona urbana de Curitiba terminava na rua João Negrão.
“O resto era um só banhado”, atestava satisfeito. Menino, já era fascinado pela vida. Observava o cotidiano e se deslumbrava com as luzes e as sombras, o preto e o branco. E registrava tudo o que via: histórias, guarda-freios, visitadores de locomotivas, tudo... “Imagine a perspectiva de uma criança de oito anos que vê, pela primeira vez, um bonde. Ah! Eu acho que as crianças de hoje nem percebem seus traços. As cidades são mutantes...”, resumia.
Mas nem as rápidas transformações urbanas lhe tiraram a sensibilidade. “Sempre tive a noção exata da miséria do povo”, refletia comovido. Fragmentos de vida eram contados, em reminiscências, como as sucessivas enchentes que aconteciam na cidade. “A gente acordava no meio da noite com a água invadindo a casa. O refúgio era o sótão”, contava, deslumbrando o ouvinte. “Hoje, o inimigo é outro e variado”, acrescentava em uma análise lúcida sobre o seu próprio tempo. A rua - a que se referia - era a Avenida Capanema, atual Affonso Camargo. “Quando as águas baixavam era uma lama só e uma trabalheira danada”, recordava.
As marcas de uma dessas enchentes ele carregou para sempre: um ferimento grave em um dos olhos. O menino Poty entrou em uma tina de lavar roupa e foi navegando, aventureiro, naquele novo rio. Na volta, a tina afundou e ele ficou preso em uma taquara que lhe atingiu um olho. Mas nem a fatalidade lhe roubou a vontade de viver. O sofrimento e o tampão no olho não o impediram de assistir, junto com as primas, a todos os filmes que quis.
Adorava cinema. Não entendia nada do enredo, mas confessava que ficava fascinado. Os filmes eram em preto e branco e era o que importava. “O colorido nunca me impressionou”, ressaltava. Não que ele não apreciasse os pintores das cores. “É que a minha natureza me leva para o preto e o branco”, explicava. Para ganhar uns trocados, foi distribuir o jornal Diário da Tarde. Logo depois, já publicava os seus primeiros desenhos no mesmo jornal. Assim, em quadrinhos, surgiu Haroldo, o Homem Relâmpago. Poty tinha apenas 14 anos.
Nesta época, o acesso aos livros de pintura, principalmente europeus, era muito difícil. Mesmo assim, conheceu Goya e Rembrandt. A cor da pintura era verde. “Era tudo verde”, relembrava rindo. Logo depois viajou, estudou e chegou mais perto “desse mundo encantado e mágico”, que ele soube captar em traços, com beleza e talento raros.
Em 1954 Poty se casou com uma mineira, Célia Neves. “Ela não possuía uma beleza clássica. Mas bastavam dois minutos de conversa e ela se tornava belíssima”, dizia orgulhoso e feliz. Com a morte da mulher, veio a solidão que ele desdenhava com um balançar de ombros.
Poty ensinava que a ausência é apenas física. E para quem duvida, basta passear pela cidade para ver Poty em cada canto, parede e monumento. Curitiba e Poty se abraçam, se confundem, e se fundem em uma única obra de arte e de humanidade. Para sempre.
Vania Mara Welte
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